A coreografia de um gênio do palanque
Ao personagem popular, de cabelos desalinhados e terno amarrotado, somavam-se discursos inteligentes, nos quais enfileirava raridades gramaticais pinçadas dos desvãos do dicionário
Naquele Brasil em que a televisão ainda engatinhava, os comícios eram uma espécie de novela das 8 e os principais atores políticos, tão populares quanto as estrelas da Globo hoje. Nenhum fez tanto sucesso quanto Jânio Quadros em 1960. Durante a temporada eleitoral, o candidato à presidência protagonizou em centenas de cidades apresentações em que se revelou um gênio do palanque.
A coreografia e o roteiro se repetiram em todos os comícios. Ele chegava no fim da festa, suando sob o terno de suburbano salpicado pela caspa e empunhando um sanduíche que simulava a falta de tempo para refeições normais. Convocado pelo locutor, passeava o olhar estrábico pelo oceano de vassouras antes de começar o discurso, sempre melhor na forma do que no conteúdo.
Sem cometer um único erro gramatical, enfileirava mesóclises e ênclises, abusava dos pronomes oblíquos e colecionava raridades pinçadas dos desvãos do dicionário para comunicar que chegara a hora de enquadrar os corruptos, os maus funcionários públicos, os empresários gananciosos, os adversários em geral e o presidente da República em particular. Dado o recado, Eloá se aproximava para, abraçada ao marido, endossar em silêncio a fala de encerramento.
“Minha mulher pediu-me que dirigisse as últimas palavras à mulher brasileira, a verdadeira dona da vassoura”, sublinhava o sotaque inconfundível. “Àquela que sofre no trabalho permanente do lar, que deve equilibrar as contas de salários de miséria.” Encerrado o espetáculo, as eleitoras exibiam o sorriso de quem descobrira que, olhando bem, Jânio Quadros, além de tudo, não era tão feio quanto diziam.
Na posse, momento acompanhado por todo o país, Jânio foi mais Jânio do que nunca. Dois dias antes da cerimônia, Oscar Pedroso Horta, ministro da Justiça do presidente eleito, contou ao poeta Augusto Frederico Schmidt que o novo presidente pretendia responsabilizar JK por entregar-lhe “um país falido, um vendaval de insânias e um reinado de nepotismo”. Ao ouvir a informação, Juscelino prometeu reagir com um soco no rosto do desafeto.
Da mesma forma que o primeiro, feito no Congresso, o segundo discurso do dia, depois da transmissão da faixa presidencial, não fez referências a JK. Jânio só cumpriu a promessa à noite, num pronunciamento de 40 minutos em cadeia nacional de rádio. O agredido já não podia reagir. A bordo de um avião, cruzava o Atlântico em direção à Europa.
fonte: Veja
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