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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A VIDA É BOA

Longe de mim sentir tédio da vida. Aos 62, não posso mais me dar a este luxo. Sentir tédio é para os jovens

 
Já passa da meia noite. A Hora Grande passou por mim quase sem deixar nenhum vestígio, tão discreta como um padre ouvindo as confissões dos fiéis em um confessionário da vetusta e solene Igreja dos Remédios. Todos dormem, agasalhados confortavelmente entre os repousantes braços de Morfeu. Um silêncio quase total e absoluto domina inteiramente a casa. Pois é, todos dormem, menos eu, que permaneço insone com meus olhos de coruja arregalados diante da tela do computador. Afora isso, restam em mim todos os sonhos do mundo, todos os desejos que jamais concretizei. Ou porque não pude, não me foi possível por inúmeras razões e variegados motivos que nem mesmo valeria a pena enumerar em um inútil rol de omissões e de frustrações sem conta. Melhor guardá-los só para mim em algum recôndito e esconso vão das gavetas da memória.


Graças a Deus, os telefones permanecem em deliciosa mudez, pelo menos até agora. Confesso que, por ora, encontro-me mergulhado num profundo tédio. Não, de forma alguma posso afirmar que esteja dominado por um tédio da vida. Claro que, vez ou outra, o existir me parece tão tedioso quanto um longo discurso de político, um filme chato passando na televisão, um jogo da atual seleção brasileira. Longe de mim sentir tédio da vida. Aos 62 anos, não posso mais me dar a este luxo. Sentir tédio da existência é para os jovens, que ilusoriamente pensam já haverem vivido tudo, mas na verdade não viveram nada, porque o tempo conspira sempre a favor da juventude. Depois dos 50, quando se dobra o terrível Cabo da Boa Esperança, vê-se que o buraco é muito mais embaixo do que a gente costumava pensar.


É nesses momentos de noturna e incompartilhável solidão que me vem mais forte e mais intensa a vontade de escrever. Aliás, eu tenho que escrever, mesmo se não me der vontade. Ave, palavra. Apesar de tantos anos de cotidiana convivência, eu ainda não consegui dominar os teus vastos e incontáveis segredos. E nem seria verdadeiro dizer que não tentei. Teus mistérios, que misturam o sagrado com o profano, permanecem os mesmos que possuías quando comecei a descobrir os teus insondáveis, indefiníveis caminhos. Ah, como queria eu ser o rei do palavreado e escrever, para mim, fosse uma tarefa mais fácil do que voar é para os pássaros. Feitos estes passarinhos simpáticos, errantes, vagabundos do espaço agora docemente pousados nos fios estendidos por entre os postes na frente de minha casa. Entanto, se voar é com os pássaros, escrever deve ser comigo. Ou não será? A pergunta fica pairando no ar carente de respostas que não tenho para dar com toda a clareza do meu pensamento.


Escuto uma discussão distante. Se não me engano, mais parece briga de marido e mulher. Ouço gritos, imprecações, insultos, choro, lamentações, o bater violento da porta de um carro se fechando, depois partindo em alta velocidade pela rua afora. Uma criança chora alto como um cão uivando. Pronto. Quebrada foi a calma da noite á minha revelia. Mais uma batalha doméstica apenas começou e acho que não tem hora para terminar. Mais um casal que se desentende pela alta madrugada feito os casais costumam se desentender em qualquer parte do mundo. Será que os dois inda se amam ou já se odeiam e somente suportam a presença um do outro como dois condenados presos na mesma cela? Como dois animais confinados na mesma jaula de um circo ou de um jardim zoológico? Sabe-se lá. O que sei eu da alma humana que nem com palavras se decifra? A zoada enfim parou. A noite voltou a ficar silenciosa e calma não sei até quando. A vida é boa, penso. E recomeço a dedilhar, sem pressa, as teclas do computador.

fonte: Coluna Airton Monte/O Povo

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