Quando Paulo Nazareth recebeu a notícia de que iria mostrar um trabalho seu na Art Basel de Miami, uma das maiores feiras de arte contemporânea do mundo, ele disse para si mesmo: "Não posso chegar aos Estados Unidos sem passar pela América Latina". E se negou a ir de avião. "Não podia pegar um avião no Brasil e descer em Nova York como se não existisse nada entre um ponto e outro", justificou Paulo ao Magazine, por telefone, de San Diego, na Califórnia, para onde seguiu depois da feira, cruzando de ônibus o país, de leste a oeste.
Como a ideia era chegar aos Estados Unidos "impregnado" de América Latina, além da resolução de cruzar o continente por terra, ele decidiu também não lavar os pés durante todo o percurso. "Encontrei o João Castilho, o Pedro Motta e o Pedro Davi (fotógrafos também mineiros) no México, e eles são testemunhas disso", comentou, acrescentando: "Eu não considero sujeira, mas terra da América Latina". Paulo só foi lavar os pés no rio Hudson, que banha a ilha de Manhattan, em Nova York, no dia 28 de outubro, seis meses e quinze dias depois de iniciada a jornada.
Desde sua partida do Palmital, em Santa Luzia, onde vive e mantém uma banca na feirinha local, vendendo trabalhos entre gravuras e textos, o artista já rodou dezenas de milhares de quilômetros, passando por cidades de Minas - incluindo Governador Valadares, onde nasceu, em 1977, e ouviu muitas histórias sobre a "América" e o México -, rumando ao Sul do Brasil e depois subindo pelos países da América Central até chegar aos EUA.
Quando chegou à Art Basel, Paulo Nazareth se surpreendeu com a dimensão da feira. "Não sabia da importância. Para mim, era uma feirinha igual à do Palmital". E sua obra, apresentada pela galeria paulista Mendes Woods, acabou chamando muita atenção, sendo inclusive citada numa crítica do "The New York Times" como o único trabalho realmente original na exposição Art Positions, dedicada aos artistas emergentes. A instalação, intitulada "Mercado de Artes/Mercado de Bananas", conjuga-se com uma linguagem de performance e se constitui de uma Kombi 78, verde, carregada por uma tonelada de bananas, que eram vendidas por Paulo a US$ 10, e cuja cor amarela, junto ao verde, criava um belo aspecto visual. Além disso, com as bananas amadurecendo, o cheiro delas flutuava pelo ambiente, expandindo também o aspecto sensorial. "As bananas atraíam mosquito e gente. Era a única obra que tinha cheiro lá", disse Paulo.
Diante da banca, preparado para receber a "freguesia", o artista expunha cartazes com dizeres do tipo: "Vendo minha imagem de homem exótico". "Eu vendia banana e a minha cara. Aí eu falava: ‘Tem duas coisas muito baratas nessa feira, a banana, a US$ 10, e a minha foto, que eu vendia a US$ 1’. E estavam mais baratas que o café da feira, que nem era arte e estava sendo vendido a US$ 15", disse Paulo. "Se estava indo para uma feira de arte, então era para vender.
Aí eu disse: ‘É venda, então é venda’. Vamos assumir. E a Kombi é como se fosse a feira numa pequena escala. O trabalho é dentro de um lugar, e eu falo desse lugar em que eu estou".
A autocrítica presente na obra de Paulo se confundia com o papel do vendedor da performance, que, confrontada com o público, tornava-se imprevisível. "Passavam pessoas tirando foto minha sem pagar e eu gritava: ‘Estão me roubando!’", contou, divertindo-se. "Teve uma figura que resolveu protestar e comeu uma banana, e eu gritei: ‘Estão me roubando!’. Aí chamaram a polícia, queriam me colocar para fora, mas, depois, entenderam o que estava acontecendo e mandaram a mulher me pagar. E eu dizendo: ‘Essa mulher comeu minha arte’".
Como bom e experiente vendedor, Paulo recebia quem se aproximava de sua instalação com um repertório enorme de histórias, vivenciadas ao longo de sua jornada pelo continente americano. É aí, no caráter performático de sua obra, que as inusitadas opções de viagem do artista ganham sentido dentro do contexto de sua estética - não se tratava de mero papo de vendedor, mas de "notícias", como ele diz, sobre experiências que diziam respeito à cultura, à política e a muito da realidade do continente americano.
Notícias, muitas vezes, trazidas de rincões sobre os quais ninguém naquele lugar teria algo a dizer. "Virei um ponto de referência. Era um espaço animado. Era a América Latina. O pessoal chegava, eu contava causos e as pessoas ouviam. Por isso, ela (Karen Rosemberg, a crítica do ‘NY Times’) falou que era um ‘espaço de pequenos espetáculos’. E eram espetáculos mesmo - de camelô. Tipo esses caras que ficam na praça da rodoviária dizendo que vão meter a mão na caixa cheia de cobras. Então, é a performance e a venda, e eu tenho que contar causos para vender.
FOTO: Paulo Nazareth Arte Contemporânea LTDA./Divulgação
Elementos verbais, simples e precários marcam presença nas obras
Artes visuais
Paulo transforma obstáculo em obras artísticas
Douglas Resende
Especial para O Tempo
Paulo Nazareth deve estar, neste momento, em algum ponto entre a fronteira dos Estados Unidos e do México, viajando com seu bornal e se preparando para iniciar - novamente por terra - o percurso de volta a Minas. A viagem tem muito significado para seu trabalho pelo fato de vida e arte serem aproximadas pelo artista, colocadas uma em relação com a outra. Por isso, ele diz que as matérias-primas de sua arte são, muitas vezes, "relações ricas com a vida".
A própria trajetória de vida de Paulo - que tem origem indígena, da etnia Krenac - tem uma riqueza e diversidade grandes. Desdobrou-se em várias tentativas de ganhar a vida, antes de decidir que sobreviveria de arte. Ganhou um quarto de salário mínimo para cuidar de cerca de 300 porcos, em Curvelo. "Ajudava no parto, dava injeção, cortava, presas, preparava a comida e limpava as baias", conta. Depois, foi empregado doméstico, cuidou de cachorro, foi jardineiro, gari, padeiro, balconista, agente de saúde.
Tentou ser vendedor de muamba do Paraguai depois de ter vendido feijão, limão, pipoca, picolé e corante. "Mas não era muito bom vendedor… Sempre vendia muito barato", conta. "Esse negócio de vender não caiu bem, não. Aí, transformei isso em arte. Na verdade, tudo em que eu não era bom, transformei em arte. Num outro trabalho, por exemplo, pintava faixas e fazia tudo torto, malfeito. E, agora, meu trabalho tem sempre a palavra escrita", reflete Nazareth.
De vendedor fracassado, ele passou a ser o dono da Paulo Nazareth Arte Contemporânea Ltda. "Eu tinha um professor que dizia que o nome do artista é uma marca. E é mesmo!", comenta ele. "E eu gostava dessa ideia da ‘firma’, que tem relação com o verbo ‘firmar’. É a minha firma, uma empresa que produz arte contemporânea. E aceitamos encomendas", diz, bem-humorado.
Notícias da América. A obra "Mercado de Arte/Mercado de Bananas" é mais um produto da Paulo Nazareth Arte Contemporânea Ltda. e parte de um projeto maior, que sua viagem continental veio deflagrar. Projeto que foi intitulado "Notícias da América".
"São fragmentos. Essa Kombi é parte das ‘Notícias’, e não o contrário. A feira acaba, e eu continuo", diz, referindo-se, primeiro, ao tempo que passou, depois da Art Basel, no Little Haiti de Miami vendendo as bananas, que passaram a custar US$ 1 a centena. Depois, quando tomou o ônibus para o oeste dos EUA, se propôs a registrar a paisagem pela janela, dentro de outro projeto sobre a mudança da paisagem. Ao mesmo tempo, observava se encontrava algum indígena nessa paisagem, pensando aí no projeto "Cara de Índio", sobre indígenas urbanos. "Pela janela, não vi nenhum, mas, quando, desci encontrei uma amiga Cherokee", conta.
FOTO: Paulo Nazareth Arte Contemporânea LTDA./Divulgação
OTEMPO
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