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quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Egoísmo acelerado


Antropólogo diz que costume de querer levar vantagem em tudo se reflete no trânsito

Daniel Santini
daniel.santini@folhauniversal.com.br
Ao escrever “Carnavais, Malandros e Heróis” em 1979, o antropólogo Roberto da Matta explicitou aspectos essenciais da maneira como o brasileiro lida com espaço público, hierarquia e poder. Explicou desde expressões como “sabe com quem está falando?” até as relações políticas no País. Com o livro chamou a atenção para problemas cotidianos, o apadrinhamento, o jeitinho, o paternalismo, e ajudou a fortalecer a crítica aos favorecimentos tão comuns na sociedade. Agora, mais de 3 décadas depois, o acadêmico volta a fazer críticas precisas e apontar injustiças, só que desta vez usando como base estudos sobre trânsito. Aos 74 anos, em meio a uma rotina corrida, na qual divide tempo entre a família, exercícios diários, aulas e palestras, ele concedeu essa entrevista por telefone em dois momentos. O primeiro, ironia à parte, no trânsito da Ponte Rio-Niterói.

1 – Como surgiu o interesse em pesquisar o trânsito e escrever seu último livro, o “Fé em Deus e Pé na Tábua”?
Trata-se de um projeto antigo. A preocupação nasceu em 1963 quando visitei os Estados Unidos e vivi em Cambridge, Massachusetts, e estudei em Harvard. No Rio de Janeiro, eu trabalhava no Museu Nacional e estava acostumado a dirigir. Quando cheguei nos Estados Unidos, descobri que as ruas pertencem também aos pedestres e não somente aos carros. Havia igualdade. Era só colocar o pé na rua em qualquer lugar que os carros paravam. Se atropelassem, era crime. Aqui, só virou cri-
me recentemente.

2 – Um trânsito bem diferente?
Sim, um trânsito organizado em que um respeita o outro. Fiquei chocado com a igualdade. O interesse nasceu daí. Veio espontaneamente. Um interesse de caráter cívico. Depois, o projeto no qual me engajei foi entender a construção do espaço púbico brasileiro. Estudar como nos comportamos em público.

3 – Aquilo de querer levar vantagem?
Sim, tudo aquilo que a gente chama de malandragem. Desenvolvi uma teoria: você tem uma ética para casa e outra para o mundo público. Em casa, a gente tem consciência, as regras são internalizadas desde cedo. Esperamos o outro comer, batemos na porta para entrar em determinados quartos, respeitamos os mais velhos. Na rua não. Não fomos treinados para vivenciar a igualdade, que é um valor fundamental para uma sociedade democrática.

4 – É quando uns acham que podem mais que outros?
Exato. Em 1979, publiquei “Carnavais Malandros e Heróis” e ali comecei a estudar as dificuldades do Brasil decorrentes desta desigualdade. Quem tem nível superior pensa que é superior. Trata-se de uma experiência milenar que tem a ver com a aristocracia, a época do Duque de Caxias, do Barão de Mauá, do Conde d´Eu (nobre francês, marido da princesa Isabel), que não precisavam competir em igualdade, eram sempre os primeiros.

5 – E a relação disso com o trânsito?
Hoje a nossa forma de transitar ainda tem esse viés aristocrático. Cada cidadão de destaque tem um carro e quanto mais importante for o cidadão, melhor e maior tem que ser o automóvel. O sujeito age como se fosse um supercidadão, acha que tem o direito de fazer ultrapassagens perigosas e o que for preciso para chegar na hora. Ele se sente com mais direito que o trabalhador comum, se considera mais importante. E isso quando, na realidade, é o trabalhador comum quem tem o ponto descontado se atrasar.

6 – É baseado neste tipo de observação que escreveu o último livro?
No fundo, esse livrinho faz um sumário através de exemplos no trânsito dessas atitudes. No Brasil, você pode ter uma frota melhorada, sinais mais bem direcionados, faixas mantidas com grande cuidado, mas continua tendo absurdos. É o abuso baseado no eu me sinto superior, sou superior. É só pensar. Por que um sujeito atropela ciclistas como aconteceu no Rio Grande do Sul? Porque ele considera que o uso da rua pelos ciclistas é supérfluo e menos importante. Ele entende que eles têm menos direito do que ele que está em um carro. Ele não consegue perceber o direito do outro. Ele não consegue perceber o outro.

7 – Como lidar com essa questão?
A primeira maneira de lidar com qualquer problema de caráter sócio-cultural-psicológico é tentar configurar o problema, admitir que ele existe. A cura é o contato com o problema. Não adianta querer forçar, criar um Código de Trânsito sueco e achar que tudo vai mudar de uma hora para outra. Não vai. Depois de admitir o problema, é preciso preparar a sociedade para mudanças.

8 – De que maneira?
É preciso colocar em discussão, mostrar os benefícios. É importante usar todos os recursos que se tem hoje, gráficos, publicidades, computador, recursos digitais; fazer demonstrações claras. Há diversas soluções a serem implementadas. Poderíamos ter, por exemplo, um mecanismo na Ponte Rio-Niterói para quem não está sozinho no carro pagar menos pedágio. Ou uma pista especial nas avenidas para dar prioridade aos carros com mais de uma pessoa.

9 – É preciso efetivar isso logo, não?
Sim, e é com entrevistas como esta que a gente vai alterando o inconsciente aristocrático. O Estado tem que estar a serviço da sociedade. É preciso retomar antigas práticas, como, por exemplo, o transporte ferroviário. Ele foi dinamitado no Brasil. A natureza não é ilimitada, os recursos naturais vão acabar. Não é questão de religião, política ou economia, é uma questão de sobrevivência da espécie humana.

10 – Há hoje movimentos de defesa de transporte alternativo, como as “Bicicletadas”, e coletivo, como  o “Passe Livre”. Como vê este tipo de iniciativa?
Com esperança. Tudo começa pequeno, mas são movimentos importantíssimos. Sou de uma geração que em Niterói todo mundo se locomovia de bicicleta. Em várias cidades isso é possível. Hoje, a gente não só substituiu a bicicleta pelo automóvel, como o estilo de dirigir ficou mais agressivo e inconsequente. E isso tem que mudar.

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