Há exatos 100 anos nascia um dos maiores nomes da história do samba. O compositor Noel Rosa tornou famosa a Vila Isabel, exaltada em diversas de suas canções. Amores e desilusões também são temas recorrentes na obra do poeta, que, até hoje, suscita discussões sobre seu valor para a literatura brasileira
O ano de 2010 comemora o centenário do jovem Noel Rosa, sambista marcado por uma incrível genialidade que foi capaz de mudar para sempre a música popular brasileira. "Prefiro viver intensamente e não extensamente", dizia Noel. E intensos foram os 26 anos que viveu. Ele compôs cerca de 250 músicas em sete anos de vida artística, deixando muitas histórias de sua existência boêmia e apaixonada. Sim, Noel era poeta e sambista.
As novas gerações de literatos ainda o saúdam, os músicos a ele posteriores lhe estendem o violão e o tamborim em pedido de bênção. Brasileiros espalhados por essa vastidão de país a fora vivem batucando e cantando suas bossas. Porque Noel Rosa pertence à categoria máxima dos gênios da arte.
No dia 11 de dezembro de 1910, Vila Isabel recebia o menino Noel num domingo, de parto difícil. O filho de Dona Marta de Medeiros Rosa só conseguiu nascer com a ajuda do fórceps, que, acidentalmente, lhe rendeu um afundamento no maxilar, estigma de toda a vida. Impedido de mastigar habilmente, a deformação contribuiu para a fragilidade de sua saúde. Mas Noel sempre foi muito esperto para se deixar abater com tal problema, tanto que aos 20 anos ingressou na faculdade de medicina, para a felicidade geral da família.
As aulas, no entanto, aborreciam Noel, pois ele, há muito, fora conquistado pelo feitiço da noite, da boemia, das mulheres e da cadência do samba. Não quis ser médico, abandonou a faculdade. O que Noel queria era ganhar as multidões: "O que eu objetivava era ver minha música difundida por toda a cidade, propagada pelas mais diferentes vozes, florescendo dos assovios anônimos, dos pianos dos bairros, das vitrolas. Imaginava o meu prestígio quando as minhas produções obtivessem essa projeção". E ele conseguiu. Seu primeiro samba, "Com que Roupa?", foi a sensação no Carnaval de 1931, no Rio de Janeiro. Mas esse foi apenas o primeiro de muitos sucessos.
A maneira mais eficiente de ganhar as multidões era participando dos programas de rádio. Nesse tempo, o disco e o rádio já haviam ganhado seu espaço no cotidiano do País, e foi o samba o grande responsável por essa difusão.
Paixões e polêmicas
A vida e a obra de Noel Rosa formam um mosaico de sambas e paixões. Todas as suas músicas apresentam uma marca biográfica que reiteram a sinceridade que sempre norteou sua missão como artista. São muitas as histórias da biografia de Noel que se eternizaram em suas canções. Percebemos, através delas, suas opiniões, suas críticas, sua energia e, principalmente, conhecemos bem de perto seus amores e desafetos.
Para muitos biógrafos, uma bela morena foi a responsável pelo maior duelo do samba: a polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista. Tudo começou quando Batista, em exaltação à malandragem, grava o samba "Lenço no Pescoço": "Meu chapéu do lado/Tamanco arrastando /Lenço no pescoço /Navalha no bolso/Eu passo gingando/ Provoco e desafio /Eu tenho orgulho/Em ser tão vadio". Repreendendo a postura do dito malandro, Noel compõe "Rapaz Folgado", uma direta provocação ao samba de Wilson Batista. Os versos da canção dizem: "Deixa de arrastar o teu tamanco /Pois tamanco nunca foi sandália/ E tira do pescoço o lenço branco /Compra sapato e gravata/Joga fora esta navalha que te atrapalha".
Não suportando a afronta, Wilson escreve "Mocinho da Vila" e alfineta: "Você que é mocinho da Vila/Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais". Respondendo a altura, Noel compõe o clássico "Feitiço da Vila": "Quem nasce lá na Vila/Nem sequer vacila Ao abraçar o samba /Que faz dançar os galhos/Do arvoredo e faz a lua, /Nascer mais cedo /Lá, em Vila Isabel,/Quem é bacharel/Não tem medo de bamba".
A provocação fez Wilson gravar "Conversa Fiada" que teve como troco, o samba "Palpite Infeliz", de Rosa. As respostas de Noel sempre tinham enorme repercussão, transformando-se em sucessos, o que enraivecia ainda mais Batista, tanto, que em seu último golpe, apelou para a deselegância ao compor "Frankenstein da Vila", insinuando o defeito no queixo de Noel. Dessa vez não teve réplica, estava encerrado o duelo.
O amor e a mulher não são os temas mais recorrentes nas canções de Rosa e, quando eles aparecem, trazem uma estampa bem diversa das músicas cantadas por seus contemporâneos. As canções apaixonadas da época seguiam um estilo romântico-parnasiano, repleto de exagero e pieguice. Ao invés de exaltar a impossibilidade amorosa ou divinizar a mulher amada, Noel Rosa escreve seus versos com irreverência, revelando uma postura diferente diante das divas e dos dilemas do coração.
Mas nem sempre foi assim. Várias musas passaram pelos braços e pelo violão do poeta, mas suas mais belas canções líricas tiveram um destinatário comum: Ceci, a Dama do Cabaré. O maior amor de Noel.
Quando ele conheceu a jovem dançarina na Lapa, o destino da música brasileira mudou pra sempre. Desencontros, traições e felicidade marcaram o relacionamento dos dois.
Foi para ela que ele compôs, entre várias: "Pra quê mentir?", Pela primeira vez na vida e o clássico "Último Desejo", uma carta de despedida da vida e de seus amores. Esse samba foi gravado por Aracy de Almeida dois meses depois da morte de Noel.
Modernismo
É recorrente a discussão acerca do caráter literário das letras de música. Para muitos críticos, os versos de canções populares possuem um caráter inferior quando comparados aos versos de poemas feitos para serem ´lidos´. Outros teóricos se posicionam de forma contrária, acreditando que muitas das letras de nosso cancioneiro popular comportam um caráter poético, podendo, dessa forma, ser analisadas literariamente. A união entre poesia literária e poesia musical também pode ser observada na obra de Noel Rosa.
Tudo pode virar poesia, essa era a máxima divulgada pelos modernistas e refletida em seus poemas. E para Noel havia. Como viver era estar fazendo samba, tudo que lhe tocava ganhava partitura e batuque. A história do povo brasileiro atravessa suas canções.
Repete-se muito que o Brasil é um país sem memória, talvez seja verdade. Mas para o Poeta da Vila as lembranças estão sempre acessas. A cada novo sambista que nasce no coração das matas lá do Norte, um pouco de Noel é tocado e multiplicado pelas multidões. Todo grande intérprete já o cantou e as novas gerações somam curiosidades sobre sua vida e sua obra.
São vários discos em sua homenagem, regravações, livros, teses e filmes. Não foi possível a nós, vê-lo maduro em plenitude, mas nem foi preciso, dada a tamanha autoridade de sua obra. Mesmo que agora complete 100 anos, é certo que o menino Noel não envelhece, é que ele faz parte do grupo das criaturas eternas, daquelas coisas nossas, muito nossas.
Do curso de pós-graduação em Literatura da UECE*
SARAH PINTO DE HOLANDA*
ESPECIAL PARA O CADERNO 3
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