Apesar de já ter visto, naqueles programas evangélicos toscos de televisão, algumas pessoas alegando ter se curado da AIDS por fé, nenhum relato comprovado de cura existia desde a descoberta da doença. Até agora. Recentemente foi divulgado o caso de um americano cuja cura foi comprovada.
Eu entendi bem o que se passava e sabia, pelas circunstâncias que a cura ocorreu, que não era para tanto alarde. Mas me chamou a atenção um email que recebi na lista da equipe PdH. A pessoa dera a entender (e isso poderia acontecer com muita gente) que a humanidade estava mais próxima da cura do HIV do que realmente estava. Percebi que minhas ponderações seriam necessárias porque, sim, houve um avanço no entendimento da patologia, porém, como verão abaixo, o que aconteceu foi uma combinação de ousadia e muita, muita sorte.
A cura da AIDS não está tão próxima assim.
O caso
Timothy Ray Brown, o sortudo em questão, era um paciente de 42 anos, proveniente de Seattle, Estados Unidos, mas que vivia na Alemanha. Portador do vírus desde os 30 anos, mantinha a doença sob controle com o uso de anti-retrovirais, sem quaisquer complicações.
Provando que azar é apenas uma questão de perspectiva, aos 40 anos de idade, em 2007, o paciente desenvolveu um tipo de leucemia aguda (câncer do sangue). Foi submetido ao procedimento padrão, quimioterapia, da qual evoluiu até bem. Porém, a doença retornou, e novamente ele necessitava tratamento.
Desta vez, seria feito um transplante de células-tronco sanguineas (stem cells). Diferentemente de um transplante de medula, cuja doação é dolorosa e requer anestesia, o tal transplante requer apenas uma agulhada.
Como funciona o transplante
A quimioterapia mata não só as células cancerosas, mas também praticamente todas as células saudáveis. Com isso, as novas células-tronco ocupam o lugar, grosso modo, daquelas “assassinadas”. E são essas células que vão gerar o novo sistema de defesa imunológica do receptor.
Parece simples, mas aqui temos alguns problemas:
1. Ao matar todas as células de defesa, a quimioterapia deixa o paciente completamente vulnerável a infecções banais. É um paciente que faz um quadro infeccioso sem desenvolver febre. Se o médico não estiver atento, ele morre de uma hora para outra sem dar alerta. Isso até as novas células ocuparem o lugar das antigas e restabelecerem as defesas. A mortalidade de um transplante desses chega a 15-20% dos pacientes.
2. Há a necessidade de compatibilidade total entre os doadores. Imagine você receber células de defesa que sejam incompatíveis com o resto do seu organismo. Elas vão imediatamente atacar os seus tecidos! E mesmo compatíveis, em diversos tipos de transplantes, é necessário o uso de medicamentos imunossupressores para o resto da vida, afinal, compatibilidade total, só em transplantes autólogos (mesmo doador) ou entre gêmeos. Veremos adiante os números de doadores compatíveis que foram encontrados no caso.
3. No caso específico do paciente, a quimioterapia não eliminaria a presença do HIV no organismo. Ele iria se curar da leucemia, mas continuaria portador do vírus.
O primeiro golpe de sorte: achando doadores
Colocada a questão da compatibilidade, era necessário encontrar doadores compatíveis. Os médicos recorreram a um cadastro mundial (sic) de doadores de medula óssea ou células-tronco sanguíneas. Os números não mentem: de um total de 13 milhões de doadores cadastrados, foram encontrados apenas 232 compatíveis com o paciente. Incríveis 0,00178%.
Qualquer um desses doadores resolveria o problema do tratamento da leucemia. Mas foi aí que entrou um personagem ousado: o hematologista alemão Dr. Gero Hütter.
Ousadia e segundo golpe de sorte
O Dr Hütter teve uma ideia e resolveu ir um pouco além do convencional. Sabendo que existem pessoas naturalmente imunes ao HIV, por que não pesquisar, dentre esses 232 potenciais doadores, se algum deles se encontrava no grupo de imunes ao vírus?
A idéia do hematologista era plausível: eliminando as células do sistema imunológico do paciente, que são a “casa” do vírus, e povoando com células imunes, seria possível aniquilar a presença do HIV no organismo.
A imunidade ao HIV ocorre devido a mutações que alteram as proteínas de superfície celular necessárias para a entrada do vírus na célula. É como se o vírus tivesse uma chave e a proteína fosse a fechadura: alterando a fechadura, o vírus não entra. Dependendo do grupo populacional estudado, a porcentagem de pessoas que têm a tal mutação chega no máximo a 4%.
Tradução: se já era complicado encontrar doadores compatíveis, encontrar doadores compatíveis e imunes ao HIV é pra lá de ínfima. Ainda assim, dos 232 doadores, o 61º revelou-se imune ao HIV.
Pense na felicidade do cidadão ao ser avisado disso para fazer a doação.
O plano poderia seguir em frente.
A cura
Submetido ao transplante, o paciente teve boa evolução, curando-se da leucemia. Ao ser testado para o HIV, não foram encontrados sinais do vírus no organismo. Uma observação faz-se necessária: pelos testes de anticorpos, o paciente provavelmente permanecerá positivo por muito tempo. Isso chama-se cicatriz imunológica. Mas o que interessa é que nos testes de detecção do vírus, os resultados são negativos.
Por outros motivos, o paciente teve várias partes do organismo biopsiadas, e em nenhuma delas foi encontrado algum vestígio do HIV, o que responde a um questionamento pertinente: poderia o vírus se esconder em algum tecido e ali ficar latente? Por enquanto, a resposta é não.
Mas o paciente está curado de ambas as patologias. Cidadão de sorte, não?
Algumas ponderações necessárias
Tal fato deve ser encarado como mais um passo na luta contra o vírus, mas uma cura em si está longe de acontecer. Cito abaixo o que deve ser levado em conta:
1. A mutação referida não é a única que torna a pessoa imune ao HIV. Essa mutação não ocorre em pessoas de origem africana – um caso notório de resistência ao HIV foi o das chamadas prostitutas de Nairóbi, no Quênia. A ciência ainda busca elucidar todos os fatores que conferem imunidade ao vírus.
2. O caso referido foi de uma improbabilidade astronômica. Uma chance em 13 milhões. Fica difícil pensar num tratamento em massa com tão poucas chances de dar certo.
3. Todo o método aplicado no paciente gera um risco elevado de óbito. Em bom português: aplicar tudo isso numa população grande vai matar muita gente. Isso se justificaria num contexto do HIV como doença invariavelmente fatal, como é o caso da leucemia, porém, com a evolução das terapias, os pacientes agora podem passar uma vida inteira com o vírus. Não justifica um tratamento tão agressivo e arriscado.
4. O paciente deu mais sorte ainda de estar na Alemanha. Porque toda a pesquisa de doadores compatíveis tem um custo, e se estivesse em sua terra natal, a maioria das companhias de seguro-saúde americanas pagaria no máximo por 10, quiçá 20 pesquisas. Jamais se chegaria ao número 61 em terras americanas. Apesar de socializado como na Alemanha, tenho minhas dúvidas se isso funcionaria no falido SUS ou mesmo no sistema particular aqui em terras tupiniquins, já que cada testagem custa 2000 dólares.
Então, muita calma nessa hora, mesmo que para esse cidadão a frase “Aids não tem cura” tenha se tornado risível.
Dr Health, questionando os leitores: o que você faria se descobrisse ser imune ao HIV
ESG.
no caso da cura do hiv tenho certeza que ñ foi sorte e sim providencia divina.
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