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terça-feira, 24 de julho de 2012

Brasileiras denunciam esquema de exploração de modelos na Índia

Monique Menezes (Arquivo Pessoal)
João Fellet  - Da BBC Brasil em Brasília

Duas semanas após chegarem a Nova Déli, capital da Índia, para trabalhar como modelos, a paulista Monique Menezes, de 21 anos, e a gaúcha Thelma Kaminski, 19, estranharam quando sua agente disse que elas passariam a noite numa festa.
No evento, que terminou de madrugada e não estava previsto no acordo fechado no Brasil, afirmam que tiveram de servir uísque na boca de homens, que as assediaram e tentaram acariciá-las.

As condições, porém, se agravaram. Segundo elas, em vez dos US$ 2.100 que deveriam receber por mês da agência Be One Talent, gerida pela francesa Sabrina Savouyaud, ganhavam US$ 160.Foi o primeiro sinal de que a viagem, até então encarada como uma valiosa chance de ascensão profissional, não acabaria bem. "Depois daquele dia, ficamos assustadas, mas continuamos trabalhando", diz Menezes à BBC Brasil. "Estava lá para juntar dinheiro, pretendia comprar uma casa quando voltasse."

As sessões de fotos eram progressivamente substituídas por novos trabalhos em festas como hostesses ou balconistas, quando eram continuamente assediadas. Savouyaud, dona da casa onde estavam hospedadas, passou a maltratá-las.
"Ela nos insultava, dizia que estávamos gordas", conta Kaminski. "Uma vez, tomou a comida das nossas mãos."

A falta de higiene na residência, dizem as modelos, fez com que adoecessem. "A casa tinha 18 cachorros e três gatos. Os cachorros comiam nas nossas panelas e os gatos urinavam nas camas", afirma Menezes.
Alarmadas com a situação, buscaram na internet informações sobre a agente. Encontraram numerosos relatos na imprensa indiana de outras modelos que acusavam a francesa de maus-tratos.

Multa

Em fevereiro deste ano, pouco após completarem um mês na Índia, as duas procuraram o consulado brasileiro em busca de ajuda. Só então souberam que os contratos que haviam assinado ainda no Brasil, em inglês, previam multa de US$ 500 mil caso abandonassem o trabalho antes do prazo de seis meses. Os acordos haviam sido propostos por "scouters" (olheiros) brasileiros. Por temer represálias, elas preferem não nomeá-los.
"Ele me explicou que eu ganharia 50% de todos os trabalhos que fizesse, mas não disse nada sobre a multa nem sobre as festas", diz Menezes. "Como não falava inglês na época, assinei na base da confiança."
Os diplomatas lhes disseram que o exagerado valor da multa invalidava os contratos e ofereceram ajuda para hospedá-las caso quisessem deixar a casa da agente. Antes, porém, as duas procuraram Savouyaud para exigir os cachês pelos trabalhos, que, conforme o contrato, só seriam pagos no final da viagem.
Menezes calcula que tinha US$ 5 mil a receber; Kaminski, US$ 10 mil. "Mas ela disse que, como tínhamos quebrado o contrato, não pagaria nada e ainda cancelou nossos bilhetes de volta", diz Menezes.
As duas deixaram a casa e se hospedaram no hotel pago pelo consulado. A passagem de Kaminski foi comprada por seus pais; a de Menezes, por um empresário indiano que se compadeceu ao ouvir a história. "Ao entrar no avião, nos abraçamos e choramos", lembra Kaminski.
A BBC Brasil tentou contatar a Be One Talent, mas as mensagens enviadas à agência não foram respondidas.

Relatos frequentes

Segundo o Ministério de Relações Exteriores, relatos como esse têm se tornado cada vez mais comuns. "É um fenômeno recente, estimulado pelo grande sucesso das tops brasileiras nos últimos anos", diz à BBC Brasil Luiza Lopes da Silva, diretora do Departamento Consular e de Brasileiros no Exterior.
Ela diz que, nos últimos anos, ao menos 20 modelos brasileiras relataram ter sofrido maus-tratos na Ásia. Lopes afirma, no entanto, que "essa é apenas a ponta do iceberg".
"Calculamos que entre 100 e 200 modelos brasileiras possam estar nessa situação na Ásia neste momento." Além da Índia, país com maior número de queixas, já foram registrados casos na China, Coreia do Sul, Filipinas, Malásia e Tailândia.
"Pouquíssimas denunciam as condições, por temerem represálias no Brasil", diz a diplomata. "Como muitas estão irregulares, acham que não têm direitos."
Segundo Lopes, o Itamaraty tem orientado sua rede consular a colher o máximo de informações sempre que receber denúncias de modelos no exterior, para identificar outras brasileiras que estejam na mesma situação. Os esforços do órgão, no entanto, têm se concentrado na prevenção.
"Fazer o trabalho de detetive é difícil e o faremos, mas sem uma ação de prevenção estaremos enxugando gelo."

Cartilha

Para evitar novas ocorrências, o Itamaraty lançou em maio uma Cartilha de Orientações para o Trabalho no Exterior. A publicação, disponível na internet e distribuída à rede consular brasileira, têm como principais públicos-alvo modelos e jogadores de futebol.
A cartilha faz uma série recomendações a quem receber oferta de trabalho no exterior, como preferir a negociação com empresas de grande porte e registrar-se na Embaixada brasileira assim que chegar ao país de destino.
O compêndio também lista entidades privadas e representações diplomáticas que podem auxiliá-lo se enfrentar dificuldades. Nos casos em que a vítima estiver debilitada e não puder arcar com a volta, diz a diplomata, o Itamaraty poderá bancá-la.
Segundo Lopes, entre as modelos, as principais vítimas estão no começo da carreira. Costumam ser recrutadas por olheiros em shoppings, concursos de beleza e discotecas. No exterior, o trabalho consiste geralmente em sessões fotográficas em galpões nas periferias de grandes cidades, para estampar catálogos de lojas e sites. Vivem confinadas e recebem menos do que deveriam.
A diplomata afirma que não foram identificados casos de modelos aliciadas para exploração sexual, mas que algumas dançarinas brasileiras na Turquia disseram ter sido pressionadas para se prostituir.
Embora ainda pouco denunciados, os casos de modelos brasileiras exploradas na Índia estão sendo tratados por uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara dos Deputados que investiga o tráfico de pessoas. Em sessão fechada no último dia 19, a modelo Ludmila Verri, de 21 anos, relatou ter enfrentado no país asiático condições semelhantes às denunciadas por Kaminski e Menezes.
O caso de Verri, que passou três meses em Mumbai em 2010 com duas colegas, também é objeto de uma ação do Ministério Público Federal (MPF).

Fim da carreira

Enquanto o MPF age para desnudar o esquema, Monique Menezes diz tentar reorganizar sua vida em São Paulo. Após voltar da Índia, ela deixou de ser modelo e perdeu o contato com os pais.
"Eles tinham muitas expectativas com a viagem e não aceitaram minha volta antes do prazo", ela conta. "Acham que voltei porque fui fraca, porque quis."
Hoje, a jovem trabalha como recepcionista de uma transportadora. "Além de voltar sem nada, essa experiência destruiu minha vida."

BBC Brasil


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