Antonio Martins (texto)
O Brasil precisa de uma “Operação Mãos Limpas” e de uma nova democracia. Além de possíveis, estas medidas dramáticas tornaram-se indispensáveis - porque o sistema político seqüestrou a vontade dos cidadãos.
As armas usadas para mantê-la em cativeiro são a manipulação das eleições por meio de campanhas milionárias, o tráfico de influências praticado em favor dos que financiam candidatos eleitos, o pagamento de suborno regular a integrantes do Congresso Nacional – supostos “representantes do povo” Estas conclusões são inevitáveis quando se examina as denúncias de corrupção dos últimos meses em profundidade, sem receio de apurar até o fim e com disposição de encontrar saídas que resgatem a soberania popular.
Uma “Operação Mãos Limpas” — semelhante à que desvendou, na Itália dos anos 1990, os laços entre o submundo da política, o crime organizado e as empresas associadas a ambos – permitiria retomar o fio das lutas sociais por democracia, e evitar que conquistas de três décadas sejam atiradas ao lixo.
A mudança que não se completou
A partir da década de 1970, articulou-se no país um conjunto de iniciativas, movimentos e lutas cidadãs que alcançaria, nos anos seguintes, conquistas políticas inéditas. A ditadura de 1964 foi enfrentada e vencida nas ruas, por milhões. As liberdades de expressão, de manifestação pública, de fazer greve, de criar sem censura foram garantidas na prática. A mobilização deflagrada durante a Constituinte de 1986-88 ampliou estas vitórias, assegurando direitos sociais e liberdades políticas que o país nunca vivera antes. Estes avanços foram completados por mudanças culturais que estabeleceram novas relações entre as etnias e os sexos.
Mas a transformação não foi completa. Algumas brechas permitiram mais tarde, numa conjuntura desfavorável, que velhas e novas oligarquias se rearticulassem em favor de privilégios. Agora parece claro que o calcanhar de Aquiles é nosso sistema político.
Desenhado numa época em que ainda não haviam despontado claramente as novas formas de ação cidadã, ele valida os velhos mecanismos de promiscuidade entre o público e o privado. Não estabelece limites ao papel do poder econômico nas eleições. Permite que o Poder Executivo avance sobre a autonomia dos demais – por meio, por exemplo, do Orçamento não-impositivo e da nomeação, pelo presidente da República, dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Reconhece a representação como método quase exclisivo do fazer político. Inviabiliza, na prática, a democracia direta - dificiltando ao máximo os plebiscitos, os referendos, as iniciativas de lei partidas da sociedade civil, as práticas de orçamento participativo.
Uma máquina engraxada a dinheiroOs episódios revelados nos últimos meses têm origem em tais distorções. O Congresso Nacional perdeu a iniciativa de legislar, abandonou por completo o papel de centro de debates sobre o futuro do país, reduziu-se a homologador das propostas do Executivo. A sociedade civil foi impedida de ocupar este espaço. As campanhas eleitorais tornaram-se cada vez mais caras, para candidatos a ambos os poderes. Grandes grupos econômicos viram nestes custos, e no fato de estarem capitalizados, a oportunidade de patrocinar tráfico de influências.
Os fatos são eloqüentes. Milhões de reais foram depositados, ao longo de anos, em contas correntes de parlamentares - ou sacados “na boca do caixa”, em agências bancárias. Parte do dinheiro era paga mês a mês. O volume do suborno cresceu nos meses em que o Legislativo votou medidas que ferem direitos sociais. Para tentar descaracterizar o crime, parte dos agraciados considera o dinheiro recebido como “caixa dois” de campanha, e afirma que “todos os políticos” estão envolvidos na mesma prática.
O dinheiro usado para a compra de votos – ou como combustível para campanhas eleitorais, pouco importa – é fornecido, em grande parte, por grandes empresas interessadas em obter favores ilícitos do governo. Denunciado com teatralidade e diante dos holofotes da TV, o caso da Portugal Telecom é apenas um exemplo. Nas semanas anteriores já havia ficado claro que boa parte dos recursos movimentados por Marcos Valério havia sido depositada por grandes empresas ou grupos financeiros: as telefônicas ligadas ao Banco Opportunity ou o cartão Visa, por exemplo. A Usiminas havia aparecido já no financiamento ao deputado Robeto Brant.
Ousamos vencer o conformismo?Diante da crie, há duas alternativas opostas. A primeira é adotar o conformismo, renunciar à idéia de soberania popular, aceitar a impotência dos cidadãos. A segunda é propor a apuração completa das denúncias, a punição dos responsáveis e um conjunto de medidas que signifique o resgate e a recriação da política. Este caminho pode articular iniciativas políticas de grande potencial transformador.
O Brasil está maduro para uma Operação Mãos Limpas. Para desencadear este processo, é preciso ampliar a autonomia de órgãos que já estão empenhados na apuração das denúncias de corrupção. Como em casos anteriores, diversos Procuradores da República estão desempenhando papel destacado nas investigações. Na Receita Federal, há corpo profissional qualificado e com espírito cidadão para se envolver. No Banco Central, também. A própria Polícia Federal parece ter se requalificado, como mostra o trabalho brilhante executado no combate às fraudes fiscais da Daslu.
Algumas ações simples poderiam acelerar este processo. O Ministério Público deveria ter acesso integral aos documentos recebidos pelas CPMIs dos Correios e do Mensalão e formar forças-tarefas para examiná-los em detalhe, com espírito público e sem a fanfarronice de alguns parlamentares. A Receita Federal deveria ser liberada de algumas das restrições que limitaram a autonomia dos auditores, nos últimos anos. No Banco Central, precisam ser anuladas as circulares e cartas-circulares que liberalizaram, nos anos 90, a entrada e saída de capitais, favorecendo, entre outras práticas, a lavagem de dinheiro.
A vez da democracia direta
Apurados os fatos e punidos os responsáveis, é preciso adotar medidas que sacudam nosso sistema político esclerosado, impeçam a compra de votos e introduzam formas de democracia direta. Deve ser facilitada a convocação de plebiscitos e referendos – inclusive os que partem de iniciativa não-parlamentar. É preciso introduzir mecanismos que valorizem a experiência dos orçamentos participativos. O número de adesões necessário para que a sociedade civil proponha leis e emendas à Constituição deve ser drasticamente reduzido.
O próprio sistema de representação precisa ser renovado. As doações de empresas a candidatos e partidos – esta ante-sala do tráfico de influências – devem ser proibidas e, quando praticadas e descobertas, punidas com rigor. Candidatos e partidos devem ser obrigados a publicar na internet, semana a semana, os gastos eleitorais. O Ministério Público precisar ser autorizado a invetigar abusos, e propor a cassação das candidaturas, ainda durante as campanhas. O monopólio de representação, hoje exercido pelos partidos, deve ser quebrado, com admissão de candidaturas independentes. Para evitar o fisiologismo nas relações entre os poderes, o Orçamento da União deve obrigar – e não apenas apenas “autorizar” o Executivo a executar as despesas previstas.
Em certas oportunidades, a ação dos movimentos sociais e organizações cidadãs é especialmente decisiva. Como a rede de corrupção e tráfico de influências descoberta agora era liderada a partir da cúpula do PT, as velhas e novas oligarquias estão esfregando as mãos. Fala-se em retomar o processo de privatizações (começando pelo Instituto de Resseguros do Brasil-IRB). Ou, segundo propõe abertamente o deputado Roberto Jefferson, em eliminar todos os controles sobre o financiamento de campanhas, “acabar com a hipocrisia” e para que “o dinheiro financie a democracia”...
Ao propor investigação sem limites das denúncias, desarticução dos esquemas corruptos e medidas que resgatem radicalmente a democracia – livrando-a da tutela do poder econômico —, a sociedade civil teria condições de retomar a iniciativa e reverter esta ameaça. Certamente este processo provocaria baixas, entre setores de partidos que, depois de ter abandonado o sonho da transformação social, adaptaram-se também aos métodos fisiológicos da política brasileira. Mas não haveria motivos para lamento, se desta Operação Mãos Limpas resultasse também uma esquerda institucional novamente capaz de se associar às lutas por um Brasil solidário e digno.
fonte: http://planetaportoalegre.ciranda.net/spip.php?article11520
ESG
Nenhum comentário:
Postar um comentário